Coração de atleta: Benefícios x Riscos

O exercício em nível muito elevado – no caso de atletas competitivos – pode fazer mal?

Por Eduardo Figueiredo

Os benefícios do exercício são irrefutáveis, indivíduos que praticam exercícios regularmente tem menor risco de desenvolver doença arterial coronariana e redução do risco de infarto do miocárdio em 50%. A maioria desses benefícios podem ser atingidos através da recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) de 150 a 300 minutos de atividade aeróbica de intensidade moderada a vigorosa por semana para adultos, incluindo os indivíduos que convivem com algum tipo de doença crônica ou incapacidade, e uma média de 60 minutos por dia para crianças e adolescentes.

Porém, atletas realizam níveis de atividade física que ultrapassam em muito o recomendado e regularmente desafiam as fronteiras da resistência humana, e dentro desse contexto surge uma pergunta que muitas pessoas comumente fazem: o exercício em nível muito elevado (no caso de atletas competitivos) pode fazer mal? Para responder essa pergunta é necessário entendermos algumas adaptações que ocorrem no corpo, principalmente no coração através do exercício regular e intenso realizado por boa parte dos atletas amadores ou profissionais.

Atletas competitivos (alguns amadores/ recreativos) se envolvem regularmente em mais de 20 horas de exercícios intensos por semana, muito acima do recomendado pelas diretrizes de saúde. Esse nível elevado de atividade exige um aumento sustentado de 5 a 6 vezes no débito cardíaco por períodos prolongados. Para se ter uma ideia, para gerar um aumento no débito cardíaco em exercícios prolongados (Triathlon, ciclismo, corrida) e melhorar a adaptação cardiovascular, um aumento de 10% a 20% nas dimensões cardíacas tem que ser considerado. A combinação dos componentes estáticos e dinâmicos de cada esporte resultará nos efeitos hemodinâmicos específicos, e essas demandas são atendidas por uma série de adaptações cardíacas estruturais e funcionais únicas que coletivamente levarão a um grau de remodelação cardíaca induzida pelo exercício (RCIE), como geralmente é chamado o “coração do atleta”.

No geral, atletas apresentam um aumento de 10% a 20% na espessura da parede do ventrículo esquerdo (VE) e um aumento de 10% a 15% no tamanho da cavidade ventricular esquerda e direita. Além disso, atletas demonstram remodelação concêntrica e excêntrica do VE, sendo que a hipertrofia do VE pode ocorrer após 3 meses de treinamento realizado por 3-4 horas por semana. Sugere-se que 3 horas de exercícios semanais são necessários para ver adaptações no eletrocardiograma (ECG) de repouso, frequência cardíaca de repouso, pico de VO2 e massa do VE.

Interessantemente, estudos que avaliaram a função ventricular logo após o exercício de ultraendurance (entre 50km a 160km) demonstraram uma atenuação da fração de ejeção do VE e do ventrículo direito (VD), com reduções mais significativas no VD. E mais importante, para os nossos leitores (acredito que a maioria seja triatleta), a função biventricular imediatamente após um triatlo de longa distância (3,8 km de natação, 180 km de ciclismo e 42,2 km de corrida) foi atenuada com reduções maiores no VD. Esse fenômeno é conhecido como fadiga cardíaca induzida pelo exercício. A maior vulnerabilidade do coração direito é provavelmente causada por diferenças na espessura da parede, porque os aumentos relativos induzidos pelo exercício no estresse da parede são substancialmente maiores no VD em relação ao VE.

Maior duração do exercício e menor status de treinamento também estão associados a maiores reduções na função cardíaca após exercício prolongado. A magnitude da disfunção do VE e VD após o exercício de ultraendurance é geralmente leve e normaliza dentro de 24 a 48 horas após o exercício. Há algumas hipóteses para os mecanismos responsáveis pela fadiga cardíaca que incluem reduções no volume sanguíneo que podem atenuar a pré- carga cardíaca; as catecolaminas circulantes podem diminuir a sensibilidade dos receptores β-adrenérgicos; e estresse oxidativo e/ou danos à membrana dos cardiomiócitos podem atenuar a função ventricular.

Porém, alguns atletas podem desenvolver adaptações fisiológicas (tamanho das câmaras, por exemplo) encontradas no ECG que podem se sobrepor a condições patológicas, como condições morfologicamente leves de cardiomiopatias primárias, levando a uma situação desafiadora de diagnóstico. O espectro normal do ECG em atletas será influenciado pela idade, sexo, etnia e tipo de modalidade esportiva praticada, como observamos em atletas de endurance que exibem bradicardia em repouso, aumento da câmara cardíaca e a capacidade de gerar mais volume sistólico (VS). Mulheres demonstram mudanças semelhantes às dos homens, entretanto quantitativamente em menor grau. Outro ponto a ser observado entre os treinadores, principalmente os que treinam atletas adolescentes é de que, jovens com idade inferior a 14 anos frequentemente apresentam um padrão fisiológico de ECG juvenil, consistindo em inversão da onda T nas derivações V1 – V4 (situação que pode ser atribuída a doença isquêmica, hipertrofia ventricular com bloqueio do ramo direito), porém a persistência da inversão da onda T além de V2 é incomum após os 16 anos em atletas jovens brancos.

De fato, 50% dos atletas do sexo masculino apresentam dimensões das cavidades ventriculares direita e esquerda excedendo os limites superiores previstos. Por exemplo, um estudo reunindo mais de 1.300 atletas olímpicos brancos demonstrou que 45% tinham o tamanho da cavidade do VE excedendo os limites superiores previstos e 14% tinham uma cavidade > 60 mm, o que poderia ser consistente com cardiomiopatia dilatada. Outro estudo envolvendo 700 atletas revelou que quase 40% dos atletas do sexo masculino exibiram dilatação do VD semelhante à observada em pacientes com cardiomiopatia arritmogênica do VD.

Mas, como diferenciar o coração do atleta de uma cardiomiopatia? Para começar, as alterações elétricas e funcionais observadas em atletas (vistas aqui) são consideradas benignas e reversíveis após o destreinamento, no entanto, a combinação de hipertrofia do VE com alterações de repolarização ou aumento do tamanho da cavidade ventricular esquerda ou direita com fração de ejeção limítrofe baixa pode se sobrepor a uma cardiomiopatia. A questão é particularmente pertinente em atletas negros que têm maior prevalência de hipertrofia do VE e alterações de repolarização, e atletas de resistência que exibem cavidades ventriculares muito grandes com frações de ejeção limítrofe baixas. Dentro desse aspecto, é importante um diagnóstico preciso, pois um diagnóstico errôneo de cardiomiopatia poderia resultar na desclassificação do esporte. Por outro lado, um diagnóstico errôneo de coração de atleta em um indivíduo com cardiomiopatia pode comprometer a vida de um indivíduo.

Outro fator que vem chamando a atenção recentemente são as mortes súbitas cardíacas (MSC) que vem ocorrendo tanto em atletas como em indivíduos não atletas. Mesmo com os benefícios do exercício a longo prazo, o risco de MSC e infarto do miocárdio aumenta durante e logo após episódios de esforços vigorosos, e de forma interessante, a proporção de MSC que ocorre durante o esforço físico é maior em faixas etárias mais jovens. Em um estudo recente, a parada cardíaca súbita relacionada ao esporte representou 39% em indivíduos <18 anos de idade, 13% naqueles entre 19 e 25 anos e 7% entre as idades de 25 a 34 anos. A proporção de mortes que ocorrem durante o esforço físico em atletas competitivos <35 anos de idade é muito maior do que em não atletas na população em geral. Entretanto, os números absolutos de MSC são maiores em esportistas recreativos, e a maioria desses eventos ocorreu em adultos com idade superior a 35 anos. Mesmo em faixas etárias mais jovens, a maioria das paradas cardíacas relacionadas ao exercício ocorre naqueles que não praticam esportes competitivos organizados. Portanto, apesar do alto perfil de MSC relacionada ao esporte, a maioria ocorre durante o exercício recreativo. Aqui surge um ponto de especial observação, a maioria dos estudos que avaliaram o risco relativo de MSC com a participação regular em exercícios vigorosos reduziu a magnitude do aumento do risco de MSC associado ao esforço vigoroso, de modo que os maiores riscos foram observados nos indivíduos menos ativos. Homens com o nível mais baixo de atividade física apresentaram elevações acentuadas no risco de MSC a curto prazo durante exercícios vigorosos em comparação com aqueles que se exercitavam regularmente. No entanto, em uma minoria de estudos, o risco de MSC permaneceu elevado durante o esforço, mesmo entre os homens mais habitualmente ativos. Curiosamente, o risco de MSC é 15 – 20 vezes maior em homens do que em mulheres.

Mesmo com esses eventos, os dados sugerem que eventos como MSC em maratonas e triatlos são raros. De fato, a preocupação envolve indivíduos com histórico de doença coronariana e do aumento de risco em atletas participantes pela primeira vez. Esse último sugere que a preparação (treinamento) inadequada e irregular contribuíram para as fatalidades relacionadas ao esforço. A maior taxa de mortalidade durante a parte de natação do triatlo levanta a possibilidade de que fatores associados à natação, como aumento do volume central da imersão, ataques de pânico levando ao afogamento, condições ambientais adversas (por exemplo, ondas grandes ou temperaturas baixas), colisões entre nadadores e os desafios adicionais de resgate na água podem contribuir para os eventos fatais. Competidores com risco de eventos cardíacos devem ser encorajados a manter o ritmo durante a corrida, pois a corrida nos quilômetros finais foi associada a um risco aumentado de eventos cardíacos agudos.

Algumas considerações aos atletas iniciantes, antes de iniciar um programa de treinamento faça uma bateria de exames para avaliar o seu risco cardíaco e descartar qualquer possibilidade de alterações cardíacas (já testemunhei algumas pessoas serem surpreendidas nesses exames). Iniciem o programa de treinamento de forma progressiva, lentamente e respeitando os parâmetros fisiológicos (isso é individual). Cada indivíduo tem um tempo biológico de evolução no esporte, RESPEITE-O.

No mais, bons treinos a todos.

Prof. Eduardo Figueiredo
Graduado em Educação Física
Especialista em Fisiologia do exercício
Mestrando em Oncologia – PPGO / CPQ – INCA
Professor de ciclismo da equipe Cordella team
Professor da clínica de reabilitação cardíaca MEDSPORT
Personal trainer
@prof.edu_figueiredo

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