Alto rendimento aeróbico: Produto dos genes ou do ambiente?

Não existem dúvidas de que a identificação do perfil genético individual representa informação relevante que pode contribuir para melhoria do rendimento humano

Por Roger de Moraes

Enquanto o leste africano produz há várias décadas os melhores corredores de fundo do planeta, a Europa vem se consolidando como o berço do alto rendimento no Triathlon. Neste sentido, o método de treinamento norueguês alardeia sua eficiência através dos excepcionais rendimentos de Gustav Iden e Kristian Blummenfelt, sugerindo que o conhecimento científico até hoje acumulado, contribuiria de forma direta para maximizar a atuação em provas de endurance. Assim, seriam as influências ambientais ou as variantes genéticas herdadas as determinantes fundamentais ao rendimento humano? Esse antológico debate ainda parece longe de ser esclarecido.

No momento atual, parece existir um consenso de que uma combinação de genes e também as características ambientais relacionadas à vida da pessoa, contribuam equitativamente para o alto rendimento aeróbico. De fato, não existem dúvidas acerca dos benefícios ao desenvolvimento de triatletas que nascem com adequada infraestrutura material e psicológica, mas o que dizer de quenianos e etíopes que experimentam dificuldades na infância e mesmo assim (ou talvez por causa disso) revelam-se como os humanos mais aptos para correr provas de maratona em alta velocidade.

Ainda que o genoma humano seja semelhante entre os membros de nossa espécie, ele não é idêntico em nenhum de nós. Apresentamos versões alternativas que tornam impróprias as denominações de alelos “normais” e em todas as populações humanas têm sido identificadas dezenas de milhões de diferenças de um único nucleotídeo e mais de um milhão de variantes mais complexas. Embora sejam poucos os estudos com boa qualidade metodológica e mesmo aqueles que as apresentam não indiquem influências significativas de polimorfismos genéticos isolados sobre o rendimento de endurance, tem sido sugerido que algumas pequenas alterações na sequência de DNA poderiam contribuir positivamente para atuação em provas longas.

Nossas diferenças podem conferir vantagens ou desvantagens ao rendimento aeróbico e ainda que a expressão desta qualidade dependa da combinação de habilidades técnicas, táticas e psicológicas, as relações entre genótipo e fenótipo influenciam a resistência dos organismos assim como sua capacidade de se regenerar após a imposição de diferentes cargas de exercício. A esse respeito, as variantes dos genes da enzima conversora de angiotensina (ECA), do fator de indução de hipóxia (HIF-1), do fator de crescimento derivado do endotélio (VEGF), do fator de respiração nuclear (NRF-2) e do receptor ativado por proliferadores de peroxissoma (PPAR), por codificarem para enzimas críticas ao metabolismo energético e aumento da oferta e utilização de oxigênio, tem sido relacionadas diretamente ao alto rendimento aeróbico.

Em face ao exposto, suspeita-se que uma inserção no DNA da sequência da ECA, represente polimorfismo capaz de alterar a participação desta enzima no sistema renina-angiotensina, na regulação da pressão arterial e na manutenção do equilíbrio de água e eletrólitos no corpo. De fato, a presença adicional de um único nucleotídeo, reduz a atividade da enzima e ainda que não seja confirmado por todos os estudos, tem sido correlacionado com a resistência muscular superior e o alto VO2 máximo. Neste caso, haveria maior vasodilatação e menores valores pressóricos durante o exercício apesar das limitações na retenção renal de água e sódio.

Por outro lado, fatores de transcrição associados ao grupo PPAR, influenciam genes envolvidos na regulação do metabolismo de carboidratos e gorduras e também na captação de glicose pelo músculo esquelético durante o exercício. É sabido que variante alélica deste gene com substituição de timina por citosina em locus determinado, se apresenta super-representada em atletas de alto rendimento de endurance. Situação semelhante também já foi documentada para polimorfismos do NRF-2 e HIF-1 e parecem influenciar a treinabilidade do atleta que com tais variantes seriam capazes de tolerar maior carga de treinamento. A esse respeito, atletas de endurance de sucesso parecem apresentar polimorfismo no receptor para o fator de crescimento IGF-1 que aceleraria a recuperação após o esforço e com isso, permitiria a implementação mais frequente de cargas de treinamento.

Outro polimorfismo muito investigado, mas envolvido no alto rendimento de provas de força e velocidade, são as variantes do gene da ACTN3 que codifica para proteínas estruturais envolvidas na estabilização do sarcômero e na contração muscular. Neste caso, o genótipo RR encontra-se positivamente associado com o alto rendimento muscular estando super-representado em velocistas, enquanto o genótipo XX estaria associado à pobre expressão de potência e eventualmente, apesar das controvérsias, relacionada ao rendimento de endurance.

Variações em genes que codificam para enzima creatino quinase, que também desempenha funções mitocondriais, e para proteínas que participam da estrutura de ligamentos e tendões e suas interações com a matriz extracelular, parecem influenciar a susceptibilidade a lesões. Ainda que promissoras, tais informações não nos permitem identificar com absoluta certeza os potenciais e limitações do corpo humano. Se conhecer os próprios polimorfismos pode representar caminho para definir fatores de risco ou janelas de oportunidade em relação ao treinamento, a utilidade de tal prática só poderá ser revelada a partir da realização de testes genéticos que tem se tornado cada vez acessíveis à população.

Não existem dúvidas de que a identificação do perfil genético individual representa informação relevante que pode contribuir para melhoria do rendimento humano na medida em que fundamenta as estratégias metodológicas utilizadas para promover adaptações de forma individualizada. Entretanto, ainda existem muitas limitações metodológicas nos estudos científicos realizados para elucidar a combinação dos genes responsáveis pelo alto rendimento aeróbico. Neste caso, são poucas as investigações duplo-cegas e randomizados, ou mesmo aquelas que apresentem seleção adequada de voluntários. Desta forma, as informações ainda precisam ser interpretadas de forma individual e com a colaboração de biólogo especializado em esportes.

Roger de Moraes – @demoraesroger

Ex-triatleta Profissional, Professor de Fisiologia Geral
Doutor em Ciências com Pós-Doutorado no Laboratório de Investigação Cardiovascular do Instituto Oswaldo Cruz – Fundação Oswaldo Cruz

GLOSSÁRIO

Alelo: Uma de duas ou mais versões da sequência de genes presentes na molécula de DNA. Um indivíduo herda um alelo do pai e outro da mãe e embora que cada gene codifique para as mesmas características elas não são expressas de maneira idêntica. Diz-se que um indivíduo é homozigoto quando os dois alelos são iguais e heterozigoto quando seus alelos são diferentes. As modificações alélicas poderão existir em virtude de mutações sendo transmitidas através das gerações pela hereditariedade.

Endotélio: Conjunto de células que constituem os capilares e que revestem todos os vasos da macro e da microcirculação. Muito mais do que simples barreira de separação entre os elementos do sangue e a musculatura lisa vascular, sintetizam e secretam moléculas vasoativas responsáveis pelas respostas de vasodilatação, coagulação e resposta imune, sendo indispensáveis às adaptações cardiovasculares em resposta ao treinamento físico.

Fenótipo: Refere-se às características observáveis de um indivíduo como altura, cor dos olhos e tipo sanguíneo. No contexto deste artigo diz respeito à expressão do rendimento aeróbico. O fenótipo humano é determinado pela interação entre o genoma e o ambiente.

Funções mitocondriais: Funções relacionadas à síntese aeróbica de NADH+H+ e de moléculas de ATP. Envolve a oxidação de substratos como glicose e ácidos graxos no ciclo de Krebs e sua interação com os processos de fosforilação oxidativa e cadeia transportadora de elétrons necessários ao rendimento muscular. Também representa uma das principais fontes de espécies reativas de oxigênio que quando presentes em excesso podem induzir disfunções mitocondriais e celulares e contribuir negativamente para o rendimento.

Genótipo: Diz respeito ao tipo de variação presente em determinada localização do genoma. O sequenciamento da molécula de DNA pode ser utilizado para identificar genótipos que diferem em relação à combinação de bases nucleotídicas.

Investigações duplo-cegas: Representa procedimento metodológico utilizado em estudos científicos para eliminar a influência do avaliador e do avaliado sobre a hipótese investigada. Neste caso, nenhum dos dois tem conhecimento do tipo de intervenção utilizada. Quando utilizados em estudos com grupo controle e randomização dos integrantes em todos os grupos, aumenta a fidedignidade e a confiabilidade dos resultados do estudo.

Polimorfismo: Variações da sequência do DNA presentes em 1% ou mais da população. Derivam de mutações neutras ou benéficas predominantemente representadas pela translocação de um único nucleotídeo.

Sarcômero: Menor unidade contrátil do músculo esquelético ou cardíaco.

Treinabilidade: Diz respeito à capacidade do organismo em assimilar as cargas de treinamento e induzir respostas adaptativas relacionadas ao exercício aeróbico. Já foram identificados grupos populacionais com alta responsividade e outros com baixa responsividade aos estímulos do treinamento. A esse respeito, sabe-se que cerca de 20% da população não responde adequadamente aos protocolos usuais e provavelmente requerem doses mais elevadas de exercício para apresentarem os mesmos efeitos adaptativos do restante da população.

Referências:

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